terça-feira, 20 de março de 2012

Niilismo II

O sem sentido não é o mesmo que o nada de sentido. Quando dizemos que alguma coisa não tem nenhum sentido queremos dizer com isso que se trata de um simples contra-senso, de algo improcedente e que não merece mais nenhuma consideração. É assim que se procura refutar, logicamente, qualquer proposição. No sem sentido vigora a reclamação velada por um sentido completo, por um sentido que não mais oferecesse a possibilidade de um esfroço adicional de criação ou elaboração de sentido, por um sentido que perece precindir de todo empenho ulterior de interpretação. Já quando falamos de nada de sentido, o que está em causa é uma experiência inteiramente diversa. Trata-se da descoberta desconcertante de que não há nem nunca houve tal sentido completo que nos eximisse da tarefa de interpretar. Nada de sentido nos fala de um certo modo de experimentar sentido, e não de uma simples ausência ou falta de sentido. A partir do nada de sentido nenhum sentido está dado, não há nada que seja sem mais verdadeiro. O que há é sempre um sentido por fazer, um sentido por vir, um sentido que se insinua para um esforço de interpretação, o qual já é, em si mesmo, um empenho de ação. Não há nenhum sentido dado, mas isso mesmo perfaz todo o sentido. Por isso, jamais poderíamos experimentar o nada de sentido como uma simples falta, como um absurdo ou como um contra-senso. No nada de sentido somos como que atraídos para o empenho mais próprio de dar ou conferir sentido, isto é, para o empenho de criação. É que onde vigora o sentido completo, onde tudo já está ou deveria estar em seu devido lugar, não há mais nenhum espaço para a criação e nem tampouco para a liberdade.

sábado, 17 de março de 2012

niilismo

O niilismo está à nossa porta, de onde nos chega esse mais estranho de todos os hóspedes? Assim se pergunta Nietzsche em um fragmento de A vontade de poder. Precisamos considerar o que essas palavras proféticas significam. Certamente o niilismo não é a invenção de um filósofo que, como todos sabem, acabará por enlouquecer. O niilismo está aí, atravessando de ponta a ponta o nosso presente. Como sabemos disso? Sabemos por experiência, ou seja, por uma espécie de sentimento difuso que mal se deixa determinar. De fato, em toda a parte, padecemos de uma espécie de falta de convicção. Queremos ainda muitas coisas, dedicamo-nos com afinco a outras tantas, mas já não dispomos de garantias suficientes que legitimem, de modo absoluto, o que fazemos. Nunca como hoje sentimos o desamparo a que estamos entregues em nossos propósitos e em nossas ações. Não podemos mais nos apoiar em nada; queiramos ou não, somos compelidos a nos colocar a nós mesmos como fundamento do que fazemos ou deixamos de fazer. O que isso significa? Significa que o "mundo verdadeiro" desapareceu de nosso horizonte vital. Podemos reagir a essa ausência de fundamento de duas formas: podemos querer recuperar, por nossa própria conta, um fundamento qualquer, que fosse capaz de suportar a nossa existência, e, neste caso, teríamos o que Nietzsche chama de niilismo reativo ou passivo; ou então podemos reconhecer, pouco a pouco e não sem dificuldade, nessa ausência de fundamento um genuíno acontecimento libertador, e, então, teríamos o niilismo ativo ou consumado. No primeiro caso, busca-se ser afirmativo, confrontando algum valor (Deus, socialismo, culturas marginais) à presumida ausência de "valores autênticos", sem perceber que a ideia mesma de autenticidade tornou-se questionável; no outro caso, porém, já não se pode mais ser afirmativo de maneira incondicional. Supondo que a primeira atitude não esteja à altura do acontecimento do niilismo, o que nos restaria então? Deveríamos abandonar-nos a uma espécie de cinismo capaz de legitimar as práticas mais baixas e desprezíveis? Esta seria, de fato, a situação se fosse verdade o que disse certa vez Dostoiévski, através de um de seus personagens: "Se Deus não existe, tudo é permitido." Pode ser, entretanto, que as coisas se passem de outro modo. Afinal, se não estamos em condições de afirmar incondicionalmente coisa alguma, podemos, não obstante, levantar e propor muitas possibilidades dignas de fé e esperança. Tais possibilidades serão sempre ainda apenas interpretações, mas quem disse que não poderíamos jamais nos contentar com o caráter interpretativo de todo e qualquer real? Acaso não será esta a nossa grande chance? Por quanto tempo mais insistiremos em fugir de nossa liberdade radical, aquela que diz: "não há fatos, há apenas interpretações"?