segunda-feira, 30 de abril de 2012

História da filosofia: filosofia ou erudição?

O que pretendemos ao nos dedicarmos ao estudo dos autores e sistemas filosóficos do passado? Sem dúvida, em primeiro lugar, buscamos apreender a estrutura conceitual imanente a tais sistemas, de modo a nos apossarmos deles e evitarmos possíveis erros de interpretação. Alguns erros são fáceis de serem evitados, outros bem mais difíceis. Há até mesmo aqueles "erros" cujo simples reconhecimento demanda quase a elaboração de um novo posicionamento filosófico ou então só se deixam detectar mediante tal posicionamento.  Como poderíamos, por exemplo, deixar de contrapor Heráclito e Parmênides, enquanto os supostos defensores das doutrinas do "fluxo universal" e da "imobilidade do ser"? Somente quando olhamos mais de perto para o conjunto de seus fragmentos e os comparamos, por outro lado, com Platão e Aristóteles, é que chegamos a ver o quanto eles possuíam em comum enquanto "physiólogos". Só que para chegarmos a ver as coisas sob esse prisma foi preciso que eles deixassem de serem vistos como meros precursores da filosofia platônico-aristotélica e ganhassem rosto próprio. Ora, isso mesmo já equivale a um acontecimento histórico. São de fato nossos interesses e inquietações atuais que nos fazem ver alguma coisa no passado que até então não havia sido capaz de comparecer aos olhos dos estudiosos, por mais que eles usassem as lupas conceituais as mais sofisticadas. O que quero dizer com isso é que o interesse do pensamento vivo não se confunde com o interesse da objetividade historiográfica e que, muitas vezes, o que nos aparece como conquista da ciência histórica nada mais é do que o desdobramento de um evento histórico invisível para o historiador. Ninguém poderia querer conhecer a fundo um sistema filosófico, colocando-o em relação com nossos problemas e inquietações atuais, se ele mesmo já não fizesse parte daquilo que denominamos o nosso mundo histórico. Não temos, portanto, como separar, a não ser de modo artificial, o eterno do perecível, a estrutura das aparências, o sistema da "verdade material". Ou a verdade acontece historicamente ou então ela não acontece de modo algum. Não há na filosofia nenhuma verdade "em si" esperando para ser descoberta por um hipotético historiador imparcial e escrupuloso. É por isso que, ao estudarmos um autor ou sistema filosófico do passado ( e mesmo os contemporâneos fazem parte do nosso passado à medida que sem ele não se deixariam reconhecer como filosóficos), não estamos à procura apenas de saber o que, objetivamente, eles pensaram; queremos que eles nos ajudem a nos tornar pensantes justamente em relação àquilo que eles não pensaram e jamais poderiam ter pensado: o nosso presente, que, aqui e agora, nos dá bastante a pensar.

sábado, 21 de abril de 2012

Palestra sobre a "dóxa" em Platão

Nesta última terça-feira (17/04) às 18:30 ocorreu a palestra da professora Carla Francalanci(UFRJ): A dóxa no livro I da República de Platão. O evento foi promovido pelo grupo de pesquisa NOÛS - Estudos de hermenêutica filosófica e de história da filosofia e teve lugar na sala 34 do Instituto de Biologia (IB). Em vez de relatar o que aconteceu na palestra, prefiro chamar a atenção para alguns pontos elaborados e discutidos pela professora Carla tanto em sua excelente palestra quanto também nas respostas que deu às diversas perguntas que lhe foram endereçadas por alunos e professores. Todos aqueles que já tiveram contato com a filosofia, mesmo que de forma superficial, já ouviram falar na famosa oposição entre dóxa e epistéme, entre ciência e opinião, a qual corresponde a uma daquelas obviedades que fundam o nosso mundo e que, por isso mesmo, ninguém julga necessário investigar. Platão foi certamente o primeiro filósofo a estabelecer claramente essa distinção e a buscar, de maneira incansável, fundar o domínio da ciência para além das aparências e da particularidade da opinião. Todos os manuais de filosofia enfatizam esse ponto e por esta mesma razão alguns historiadores da filosofia e filósofos contemporâneos(Nietzsche, por exemplo) chegaram a designar os filósofos anteriores como pré-platônicos. Quem já não leu a famosa "alegoria da caverna" e reconheceu nesta história o contraste, tão familiar para o nosso ambiente iluminista, entre aqueles que estão presos e acorrentados às sombras da realidade e aquele outro que se liberta para a difícil e perigosa busca do conhecimento verdadeiro? Pois bem, em sua palestra, a professora Carla questiona essa oposição pura e simples exatamente ali onde ela teria se estabelecido de maneira mais paradigmática, a saber: na República de Platão. Para Carla, Platão ele próprio é profundamente ambíguo em relação à dóxa. E não se trata de uma ambiguidade qualquer. Identificada às aparências e considerada um mixto de ser e de não-ser, de saber e de não-saber, a dóxa configura a via de acesso privilegiada e única para todo e qualquer real. Todos nós, afinal, somos semelhantes àqueles famosos prisioneiros acima mencionados, como lembra a Glauco o próprio Sócrates diante da perplexidade do primeiro. A dóxa é o próprio aparecer imediato da coisa e o seu parecer para mim. Ninguém está livre de ter de tomar a realidade assim como ela de imediato se apresenta sem a nossa interferência. Se não tivéssemos, de início, nenhuma convicção a respeito de nada jamais poderíamos questionar coisa alguma. Afinal, de onde retiraríamos a direção para esse questionamento? Por isso, Carla pode dizer que a dóxa em Platão é, antes de tudo, "a evidência primeira em que eu tenho de me fiar para realizar um caminho de conhecimento." É o que vemos acontecer, a todo momento, nos diálogos de Platão, quando Sócrates pede a seu interlocutor que este confirme estar vendo as coisas de determinada maneira. Sem semelhante parcialidade no e do ver jamais seria possível progredir no conhecimento ou mesmo realizar refutações. É que então não haveria nada nem ninguém para ser refutado. É também o que pretende Aristóteles quando diz que, ao contrário da imaginação (phantasía), "a opinião não depende de nós, pois é preciso que ela seja falsa ou verdadeira"(De anima, 427 b 18), numa daquelas frases que levaram ao desespero muitos comentadores modernos, ciosos de compatibilizar os gregos com o nosso modo atual de pensar. Mas aquilo que mais me fez pensar na palestra da professora Carla foi sua afirmação de que na dóxa se faz presente a própria força da tradição, a qual Platão está longe de pretender negar. Se os sofistas podiam considerar-se em boa medida "livres" do pertencimento à tradição, Platão estava sem dúvida entre aqueles que julgavam preciso assumi-la mediante o exercício sistemático da interpretação. Afinal, a troco de que nos livraríamos simplesmente daquilo que o passado nos legou de mais precioso? Por outro lado, quando o passado já não fala por si mesmo diretamente aos nossos ouvidos, é preciso fazê-lo falar. Esta ousadia, este empenho sem garantias, é a essência do empenho de uma hermenêutica filosófica que não se ignora a si mesma. Será a verdadeira tarefa de uma história da filosofia e do próprio ensino de filosofia o empenho de revigorar a dóxa? De todo modo, isso não pode significar preferir à ciência a simples opinião.

sábado, 7 de abril de 2012

existência

Na leitura do fragmento 12 de A vontade de poder, nos deparamos com a seguinte afirmação feita por Nietzsche: "Der Charakter des Daseins ist nicht "wahr", ist falsch...". A frase soa como se se tratasse de uma verdade incontestável: "O caráter da existência não é "verdadeiro", é falso...". Ora, a existência que aqui está em questão não é aquela que, desde um tradição bimilenar, costumamos contrapor à essência, e que reconhecemos como um predicado universal de todas as coisas. Não se trata de duvidar da existência das coisas ou dos fatos. Nietzsche não é um cético nesse sentido. O que ele está dizendo é muito mais o contrário disso, ou seja, que a falsidade inerente à existência é alguma coisa que depõe a seu favor, sendo um traço extremamente positivo seu. Como entender isso? Nietzsche vem de atribuir justamente a causa do niilismo, como desvalorização de todos os valores, à crença nas categorias da razão. De certo modo, aquilo que era cultuado como ser e verdade revelou-se, por obra do niilismo, como fictício, como um produto deliberado do homem, destinado a domesticar a realidade do devir e viabilizar, por assim dizer, configurações de domínio para uma humanidade. Ora, se o "verdadeiro" é um produto do homem, aquilo que ele já não pode controlar e estabelecer por si mesmo como ilusão de domínio deve então chamar-se falso. Dizer que o caráter da existência não é "verdadeiro", mas falso significa reconhecer a existência ela mesma, a nossa existência, como o dado primordial incontornável do qual devemos partir, exatamente por esta não ser nenhum produto nosso, como eram as categorias da razão. A falsidade da existência tem a ver com o seu poder de imposição, para além de todas as nossas fantasias de controle e asseguramento, aquilo mesmo que passamos a chamar de "verdade" e que contamos como se fosse algo já dado e disponível. Por isso, mais adiante, no fragmento 15, Nietzsche pode dizer: "Die extremste Form des Nihilismus wäre: dass jeder Glaube, jedes Für-wahr-halten notwndig falsch ist: weil es eine wahre Welt gar nicht gibt." (A mais extrema forma do niilismo seria a de todo ter-por-verdadeiro ser necessariamente falso: pois não há, pura e simplesmente, um mundo verdadeiro.) Falso aqui, tal como mais acima, significa inocente, não calculado, espontâneo, imediato. Nenhuma crença pode ser o reflexo de um mundo verdadeiro. Nenhuma crença pode pretender basear-se em um mundo verdadeiro. Por isso mesmo, todo ter-por-verdadeiro deve ser reconhecido em sua imediatidade, em sua espontaneidade, sem possibilidade de ser invalidado por uma crença "de tipo superior". Mas isso significa que é a crença, e não o "saber", que forma a base e o caráter da nossa existência. Negar a crença em nome do saber seria, assim, negar a própria existência.